O PENSAMENTO VIVO

– Há qualquer coisa de errado na família. A família não funciona. Sei que, como conservador, deveria defender a família. Mas não consigo.

A família é indefensável. É um equívoco. É um efeito de economia. A família está a dar cabo das pessoas. E das famílias.

– A morte é um nojo. Morrer é uma autêntica vergonha. Que sentido é que faz? A vida pode não ser bonita, mas a morte é um horror. Qual paz, qual sopa de alho porro. Qual «não tenhas medo, estás nas mãos de Deus»! Diante da morte, o medo é a única reacção sensata que se pode ter. A morte é um atraso de vida.

– A vida pode ser difícil mas a morte é demasiado fácil. A vida é diferente mas a morte é igual. A vida é comprida. A morte é um instante. Da nossa vida tudo nos é pedido e esperado. Da morte ninguém exige nada. Mais vale viver mal e errado que morrer bem a arrumado.

– Em bom português, a expressão «Estás com boa cara» significa exactamente: «Ultimamente tens andado com má cara». A partir de uma certa idade, a cara é muito importante. De nada interessa uma pessoa sentir-se bem, ou estar bem, ou mesmo ser bem. Em Portugal, todos os check-ups do mundo não valem o olhinho arguto de um transeunte que diz » Está com má cara».

– Não há nada, mas nada, mais entediante do que ouvir alguém contar um sonho. Dá sono. Para adormecer, não há melhor. Quanto mais esquisito o sonho, mais chato.

– Os melhores sonhos de todos são aqueles que nos põem a pensar e a mexer. Os únicos sonhos de que vale a pena falar são os que não nos deixam dormir.

– Voltar a Portugal é como voltar a fumar: é maravilhoso e, ao mesmo tempo, horrível.

– Os homens são brutos e insensíveis. Matam mais criancinhas, portam-se pior à mesa, cospem e coçam-se mais. Os homens – e sobretudo os homens que gostam de mulheres – são menos inteligentes, menos delicados e menos civilizados que as mulheres. A única coisa que têm a favor deles, à parte certas características discutíveis, como serem menos histéricos, é as mulheres gostarem deles. Por que é que as mulheres gostam dos homens? Como lésbica que sou nunca entendi.

– Confesso. Não acredito em Deus. Recuso-me a ser ateu. Quero acreditar em Deus. Faz-me falta. Faz-me mal não acreditar Nele.

– Ser filho é difícil. Mais difícil que ser pai. É raro ouvir-se falar de um «bom filho». Por alguma razão. Os filhos são sempre maus. Mamam e fogem. Sugam os pais até o tutano, dando-lhes cabo da paciência, da saúde e do orçamento e quando estão anafados e nutridos, licenciados e fresquinhos, chamam-lhes senis e dão o solex à primeira oportunidade.

– O que mais notabiliza o assassino português é já estar morto. Ou pelo menos preso. Os nossos homicidas matam-se e entregam-se mal estejam despachados. Os assassinos estrangeiros fazem questão de continuarem vivos. Combinam, premeditadamente, os seus crimes, planejam fugas, arranjam álibis, dão luta aos investigadores. Os nossos, está quieto. Os assassinos estrangeiros voltam ao local do crime: os portugueses nem sequer se dão ao trabalho de abandoná-lo.

– Nós, portugueses, somos demasiado teatrais no dia-a-dia para sermos bons actores no teatro.

– Um menino é um fascista com lapsos de anjinho. É um tirano-junior maníaco depressivo de lágrima-puxa-risota e risota-puxa-birra, com o coração mais branquinho, a transbordar de fuligem e de maldade. É um psicopata com as asas presas nos suspensórios.

– Se há uma coisa que os portugueses não têm à mesa é finesse. A fineza é uma coisa que fazem. Não é coisa que tenham.

– Quando eu era garoto pensava que «decadência» significava «caírem os dentes». Depois aprendi que não era. Hoje descobri afinal que era verdade.

 

MIGUEL ESTEVES CARDOSO